quarta-feira, 18 de março de 2009

O PADEIRO


(Rubem Braga)

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz! Eu era só um rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque, no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.

(Texto extraído do livro: Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12ª Edição. Editora Ática . São Paulo.1989. p.63 - 64.)

INTERPRETANDO O TEXTO

1) Sabendo que a palavra ablução significa “ação de se lavar”, reescreva a frase “faço minhas abluções”, tirada do texto lido, sem utilizá-la.
"Faço minha higiene pessoal" ou "Lavo o rosto, tomo banho, escovo os dentes..."

2) Lock-out (lê-se locáut) é uma palavra da língua inglesa que indica um tipo especial de greve. É possível descobrir que tipo de greve é essa a partir das informações fornecidas pelo autor em seu texto?
Sim, podemos, através do texto, identificar de que tipo de greve se trata: "greve dos patrões".

3) Qual foi a primeira reação do padeiro diante da pergunta do autor?
Abriu um en0rme sorriso.

4) Qual a relação entre o trabalho do padeiro e o trabalho do autor quando jovem?
Ambos realizavam um trabalho noturno cujos resultados, logo cedo, estaria na porta das casas de todas as pessoas: o jornal e o pão.

5) Relacione a frase “Não é ninguém, é o padeiro!” com a lição de humildade aprendida pelo autor.
Embora os dois personagens realizassem trabalhos importantes para a sociedade (alimento e cultura), o jornalista se envaidecia por seu nome aparecer nos jornais, todas as manhãs, diferentemente do humilde padeiro que, embora também realizasse um trabalho digno e importante - necessário à comunidade - não se vangloriava nem se envaidecia pelo que fazia. Ao contrário, habituara-se à frase "Não é ninguém, é o padeiro!", que claramente manifesta sua humildade e simplicidade em relação à sua profissão.

6) Que tipo de narrador esse texto apresenta? Justifique sua resposta com um trecho extraído do texto.
Narrador-personagem, em 1a pessoa. Comprova essa classificação o seguinte trecho: "Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro." (Ou qualquer outro trecho que evidencie esse tipo de narrador, selecionado por você.)

7) Usando seus conhecimentos acerca do gênero textual conhecido como CRÔNICA, diga por quais motivos o texto de Rubem Braga pode ser assim classificado.
O texto de Rubem Braga é uma crônica porque fala sobre uma situação cotidiana, vivida pelo autor, que foi transformado em um texto artístico, de caráter literário. Justifica, também, a classificação do texto como crônica o fato de que se trata de um texto breve, de forte apelo emocional.

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