domingo, 4 de outubro de 2009

REALISMO PORTUGUÊS: EÇA DE QUEIRÓS


José Maria Eça de Queirós nasceu em Póvoa do Varzim, em 1845. Passou a infância e juventude longe dos pais, pois estes não eram casados. Estudou direito na Universidade de Coimbra. Ligou-se por essa ocasião ao grupo renovador chamado “Escola de Coimbra”, responsável pela introdução do Realismo em Portugal.
Eça não participou diretamente da “Questão Coimbrã” - 1865 - , a polêmica em que jovens defensores de novas idéias literárias , artísticas e filosóficas liderados por Antero de Quental , se defrontaram com os velhos românticos, ultrapassados e conservadores, liderados por Visconde de Castilho.
Dedicou-se ao jornalismo depois de formado , e viajou pelo Oriente. Em 1871, participou das “Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense” – nova etapa da campanha que implantou em Portugal as novas perspectivas culturais do Realismo falando sobre o “Realismo como nova expressão da arte”.
Eça de Queirós e o representante maior da prosa realista em Portugal. Grande renovador do romance , abandonou a linha romântica , e estabeleceu uma visão critica da realidade. Afastou-se do estilo clássico , que pendurou por muito tempo na obra de diversos autores românticos , deu a frase uma maior simplicidade , mudando a sintaxe e inovando na combinação das palavras. Evitou a retórica tradicional e os lugares comuns , criou novas formas de dizer , introduziu neologismos e, principalmente utilizou o adjetivo de maneira inédita e expressiva. Este novo estilo só teve antecessor em Almeida Garrett e valeu a Eça a acusação de galicismo e estabeleceu os fundamentos da prosa moderna da Língua Portuguesa.
Enfim , no dia 16 de Agosto de 1900 Eça morre em Paris. Deixava um episódio literário que veio a ser publicado aos poucos.

O PRIMO BASÍLIO

O romance "O primo Basílio", de Eça de Queirós, critica a família pequeno-burguesa de Lisboa. Luísa, educada sob influência de frouxos princípios morais e religiosos, romântica e imaginativa por natureza e que sempre tivera uma vida ociosa, casa-se com Jorge, homem bom, inteligente e simpático. Na primeira ausência do marido, Luísa o trai, seduzida por Basílio, seu primo e antigo namorado, recém-chegado a Lisboa. Juliana, sua criada, apodera-se de algumas cartas de Basílio a Luísa e passa a chantagear a patroa. Basílio desaparece, deixando Luísa entregue aos caprichos e exigências de Juliana. Sebastião, um amigo da família, consegue reaver as cartas. Jorge regressa. Luísa adoece e morre. Jorge, então, descobre-lhe a infidelidade.


EXERCÍCIO:

Este é um fragmento do capítulo III da obra, quando ocorre o reencontro de Basílio e Luísa:

CAPÍTULO III

Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa vestia-se para ir à casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não havia de gostar, não! Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos, a costura, a toilette, algum romance... Mas de tarde!
À hora em que Jorge costumava voltar do ministério, a solidão parecia alargar-se em tomo dela. Fazia-lhe tanta falta o seu toque de campainha, os seus passos no corredor!...
Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão, caía numa vaga sentimentalidade: sentava-se ao piano, e os fados tristes, as cavatinas apaixonadas gemiam instintivamente no teclado, sob os seus dedos preguiçosos, no movimento abandonado dos seus braços moles. O que pensava em tolices então! E à noite, só, na larga cama francesa, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores, palpites de viuvez.
Não estava acostumada, não podia estar só. Até se lembram de chamar a tia Patrocínio, uma velha parenta pobre que vivia em Belém: ao menos era alguém: mas receou aborrecer-se mais ao pé da sua longa figura de viúva tacituma, sempre a fazer meia, com grandes óculos de’ tartaruga sobre o nariz de águia.
Naquela manhã pensam em Leopoldina, toda contente de ir tagarelar, rir, segredar, passar as horas do calor. Penteava-se em colete e saia branca: a camisinha decotada descobria os ombros alvos duma redondeza macia, o colo branco e tenro, azulado de veiazinhas finas; e os seus braços redondinhos, um pouco vermelhos no cotovelo, descobriam por baixo, quando se erguiam prendendo as tranças, fiozinhos louros, frisando e fazendo ninho.
A sua pele conservava ainda o rosado úmido da água fria: havia no quarto um cheiro agudo de vinagre de toilette: os transparentes de linho branco descidos davam uma luz baça, com tons de leite.
Ah! positivamente devia escrever a Jorge, que voltasse depressa! Que o que tinha graça era ir surpreendê-lo a Évora, cair-lhe no Tabaquinho, um dia, às três horas! E quando ele entrasse empoeirado e encalmado, de lunetas azuis, atirar-se-lhe ao pescoço! E à tardinha, pelo braço dele, ainda quebrada da jornada, com um vestido fresco, ir ver a cidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na muito. Os homens vinham às portas das lojas. Quem seria? É de Lisboa. É a do engenheiro. — E diante do toucador, apertando o comete do vestido, sota àquelas imaginações, e ao seu rosto, no espelho.
A porta do quarto rangeu devagarinho.
— Quem é?
A voz de Juliana, plangente, disse:
— A senhora dá licença que eu vá logo ao médico?
— Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia atrás. Mais. O que é que você tem?
— Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei a noite em claro.
Estava mais amarela, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestido de merino preto escoado, e a cuia da semana de cabelos velhos.
— Pois sim, vá — disse Luísa. — Mas arranje tudo antes. E não se demore, hein?
Juliana subiu logo à cozinha. Era no segundo andar, com duas janelas de sacada para as traseiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.

(...)

Luísa desceu o véu branco, calçou devagar as luvas de peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou; fez ah! toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Basílio.
Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados: — ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: — Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela?
Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no ministério; disseram-lhe que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...
— Como tu estás mudada, Santo Deus!
— Velha?
— Bonita!
— Ora!
E ele, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Ele no sofá muito languidamente; ela ao pé, pousada de leve à beira de uma poltrona, toda nervosa.
Tinha deixado o degredo — disse ele. — Viera respirar um pouco à velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O último ano passara-o em Paris. Vinha de lá, daquela aldeola de Paris. — Falava devagar, recostado, com um ar íntimo, estendendo sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.
Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto anelado havia agora alguns fios brancos; mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos, quando ria, a mesma doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!
— Mas tu, conta-me de ti! — dizia ele com um sorriso, inclinado para ela. — És feliz, tens um pequerrucho...
— Não — exclamou Luísa rindo — não tenho! Quem te disse?
— Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
— Três, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes, palrar uni momento, pela manhã...
— Pudera não! És o único parente que tenho agora...
Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade melancólica; falaram da mãe de Luísa, a tia Jojó, como lhe chamava Basílio. Luísa contou a sua morte, muito doce, na poltrona, sem um ar...
— Onde está sepultada? — perguntou Basílio com uma voz grave; e acrescentou, puxando o punho da camisa de chita: — Está no nosso jazigo?
— Está.
— Hei de ir lá. Pobre tia Jojó!
Houve um silêncio.
— Mas tu ias sair! — disse Basílio de repente, querendo erguer-se.
— Não! — exclamou. — Não! Estava aborrecida, não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já.
Ele ainda disse:
— Não te prendas...
— Que tolice! Ia à casa de uma amiga passar um momento.
Tirou logo o chapéu; naquele movimento, os braços erguidos repuxaram o corpete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente.
Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçam as luvas:
— Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu...
Ela riu.
— Decerto que não...
Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:
— Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira idéia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipóia e ir lá; queria ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...
Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro; sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.
— A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! disse Basílio; e fitando-a: — Lembras-te das nossas partidas de bilhar?
Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele; disse sorrindo:
— Éramos duas crianças!
Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete; parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
— Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ela via a sua cabeça bem-feita, descaída naquela melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos — que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fora sempre o seu desejo viajar, — dizia — ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...
— Estás muito valente! — disse Basílio. — Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos, beijos furtados...

(...)

Sabes que te trago presentes?
— Trazes? — E os seus olhos brilhavam.
O melhor era um rosário...
— Um rosário?
— Uma relíquia! Foi benzido primeiro pelo patriarca de Jerusalém sobre o túmulo de Cristo, depois pelo papa...
Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito asseado, já todo branquinho, vestido de branco, muito amável!

(...)

Luísa voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de veludo preto.
— E estiveste então um ano em Paris?
Um ano divino. Tinha um apartamento lindíssimo, que pertencera a Lord Falmouth, Rue Saint Florentin; tinha três cavalos...
E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:
— Enfim, fazer este vale de lágrimas o mais confortável possível!... Dize cá, tens algum retrato nesse medalhão?
— O retrato de meu marido.
— Ah! deixa ver!
Luísa abriu o medalhão. Ele debruçou-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela. Luísa sentia o aroma fino que vinha de seus cabelos.
— Muito bem, muito bem! — fez Basílio.
Ficaram calados.
— Que calor que está! — disse Luísa. — Abafa-se, hein!
Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O sol deixara a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambinelas.
— E o calor do Brasil — disse ele. — Sabes que estás mais crescida?
Luísa estava de pé. O olhar de Basílio corria-lhe as linhas do corpo; e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os joelhos, o rosto erguido para ela:
— Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria ver?
— Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. Es o meu único parente... O que tenho pena é que meu marido não esteja...
— Eu — acudiu Basílio — foi justamente por ele não estar...
Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou logo, um pouco corado também:
— Quero dizer... Talvez ele saiba que houve entre nós...
Ela interrompeu:
— Tolices! Éramos duas crianças. Onde isso vai!
— Eu tinha vinte e sete anos — observou ele, curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados. Basílio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.
— Estás muito bem instalada aqui — disse.
Não estava mal... A casa era pequena, mas muito cômoda. Pertencia-lhes.
— Ah! Estás perfeitamente! Quem é esta senhora, com uma luneta de ouro?
E indicava o retrato por cima do sofá.
— A mãe de meu marido.
— Ah! vive ainda?
— Morreu.
— E o que uma sogra pode fazer de mais amável...
Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o chapéu.
— Já? Onde estás?
— No Hotel Central. E até quando?
— Até quando quiseres. Não disseste que vinhas amanhã com o rosário?
Ele tomou-lhe a mão, curvou-se:
— Já não se pode dar um beijo na mão de uma velha prima?
— Por que não?
Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com uma pressão doce.
— Adeus! — disse.
E a porta, com o reposteiro meio erguido, voltando-se:
— Sabes que eu, ao subir as escadas, vinha a perguntar a mim mesmo, como se vai isto passar?
— Isto quê? Vermo-nos outra vez? Mas, perfeitamente. Que imaginaste tu?
Ele hesitou, sorriu:
— Imaginei que não eras tão boa rapariga. Adeus. Amanhã, hein?
No fundo da escada acendeu o charuto, devagar.
— Que bonita que ela está! — pensou.
E arremessando o fósforo, com força:
— E eu, pedaço de asno, que estava quase decidido a não a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha em casa; aborrecidinha talvez!...

PENSE E RESPONDA:

1) O autor prepara a cena do reencontro entre os primos. Descreva o cotidiano de Luísa, depois da partida de Jorge.

2) Basílio percebe o encanto que sua figura e sua conversa causam em Luísa.

a) Que atitudes de Luísa demonstram seu envolvimento com o primo?

b) Retire do texto elementos que revelam que Basílio tira proveito dessa situação.

3) É evidente o contraste entre a personalidade romântica e sonhadora de Luísa e o caráter frio e prático de Basílio.

a) Retire do texto elementos que comprovem esse contraste.

b) Que referências feitas pelo narrador à personalidade de Luísa permitem ao leitor antever o adultério?

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